Com Haroldo Campos

Recentemente passou por Lisboa Haroldo de Campos, o grande crítico e sobretudo um dos três grandes nomes da Poesia Concreta brasileira, co-fundador do grupo Noigandres, nos anos 50, em São Paulo.

Passou - e passou despercebido. Também porque não quis que se desse qualquer publicidade à sua presença em Lisboa. Vinha dos Estados Unidos, onde ensinara durante um ano em Harvard, e estava cansado. Entrevistá-lo não foi possível. E para quê? - disse ele. Com toda a razão.

Por isso falámos apenas, tranquilamente e pouco sobre literatura. Só que, durante um jantar em que estavam reunidos alguns amigos, alguém levantou a questão do título da revista - Noigandres - que deu o nome ao grupo. Sabemos que é uma palavra que surge na Idade Média, numa canção trovadoresca provençal de Arnaut Daniel e que se tornou conhecida ao ser divulgada por Ezra Pound no seu «Canto xx» (Noigandres, eh noigandres / Now that the Defill can that meanf) É uma palavra misteriosa, pois, segundo parece, nem os mais especializados romanistas conseguem precisar o seu significado. Algumas propostas de tradução mais recentes oscilam entre cheiro de flor e noz moscada, dizia Haroldo de Campos.
Mas não foi por qualquer destas (ou outras) hipóteses de significação que o grupo Noigandres a elegeu: como se relata na Sinopse do Movimento da Poesia Concreta, «a palavra “Noigandres” foi tomada como sinónimo de poesia em progresso, como lema de experimentação e pesquisa poética em equipa».

O conhecimento da obra de Pound teve grande importância para o grupo Noigandres, mas foi sobretudo o interesse de Pound pelo ideograma chinês e pelas teorias da tradução da poesia chinesa, com base no conhecimento dos estudos de Fenollosa, o que tornou essa importância específica. E é aí que cabe referir um presente que Haroldo de Campos trouxe, nesta sua viagem, a alguns amigos: a recém-publicada obra Ideograma, Lógica, Poesia, Linguagem, que é uma série de ensaios, coligidos, anotados, e também alguns escritos pelo próprio Haroldo de Campos, entre os quais se encontra o fundamental trabalho de Ernest Fenollosa, Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia (lhe Chinese Written Character as a médium for Poetry). Neste livro agora publicado por Haroldo de Campos, é relatada a história movimentada da «cruzada fenollosiana pela renovação da educação artística, inspirada na síntese das técnicas ocidentais e orientais», onde fica bem evidenciada a «orientação instigadora» que Fenollosa tentou levar a cabo nos Estados Unidos no princípio do século.
Ernest Fenollosa morreu em 21 de Setembro de 1908, quando estava ainda em actividade intelectual e tinha produzido já uma considerável obra escrita sobre os problemas da arte, tanto no Oriente como no Ocidente. Tinha nascido em 1853 e formara-se em Filosofia por Harvard (onde se encontrara com o célebre C. S. Peirce). Em 1878, quando contava 25 anos, Fenollosa é indicado para ensinar Economia Política e Filosofia na Universidade de Tóquio - e é aí que começa a sua ligação com o Oriente. Entusiasmado em particular com a arte do Japão, Fenollosa estuda-a com tal profundidade que chega a ser reconhecido pelos próprios japoneses como um dos seus maiores especialistas. Ao condecorá-lo com a Ordem do Espelho Sagrado,oimperador exprimiu-se assim: «O Senhor ensinou o meu povo a conhecer a sua própria arte.»

Mas Fenollosa não se ocupou apenas do estudo e da divulgação da arte japonesa, estudou também a filosofia e a poesia chinesas. Em 1897, quando Mallarmé apresentou o seu famoso Coup de Dés, Fenollosa estava em Tóquio e traduzia poesia japonesa e chinesa.
Ao regressar aos Estados Unidos, por volta de 1900, faz séries de conferências sobre a arte oriental e sobre problemas da educação artística. Do programa de algumas dessas conferências poderemos deduzir, no dizer de Haroldo de Campos, «como a abordagem de Fenollosa era eminentemente estrutural (avant la lettre ... )>>. Senão vejamos: «1. A base estrutural da arte. 2. Uma comparação directa entre a arte europeia e a oriental. 3. Princípios semiuniversais de estrutura e seu uso em arte, especialmente no que diz respeito à educação artística.» É daí que deriva a designação de «estética estrutural» aplicada às teorias propostas por Fenollosa e depois por Arthur Dow.

Quando Fenollosa morre em Londres, em 1908, nessa mesma cidade vivia também na época Ezra Pound, que igualmente se deixara fascinar pelas leituras em inglês e francês de poesia chinesa e japonesa. (A propósito, recordemos como desde o Simbolismo estava em voga a chinoiserie e o niponismo - e citemos, por exemplo, as traduções de Camilo Pessanha de poesia chinesa e a actividade de Wenceslau de Moraes, relativamente à cultura japonesa.) Ezra Pound, que por volta de 1912 era já uma figura destacada no programa intelectual do seu tempo, figura destacada e sobretudo polémica, publica no número de Abril da revista Poetry uma série de poemas imagistas, entre os quais o hoje célebre «ln a station of the Metro», nitidamente influenciado pela poesia oriental. Segundo parece, muito bem impressionado por esses poemas, a viúva de Fenollosa resolve confiar a Pound os cadernos manuscritos do marido, relativos ao teatro Nô e à poesia chinesa. Eis como Ezra Pound se tornou o legatário cultural de Ernest Fenollosa.

Mas a principal contribuição de Fenollosa para a compreensão do funcionamento do mecanismo poético em qualquer língua é, como acentua Haroldo de Campos, o facto de ele ter sido capaz de reconhecer na poesia escrita chinesa (portanto, a nível grafemático), os harmónicos (overtones) vibrando diante do olho e «colorindo» todos os planos semânticos à maneira de uma «dominante». Assim, o «modelo chinês» podia servir de pedra-de-toque para a consideração do problema da poesia em língua inglesa e, por extensão, nas línguas fonéticas do Ocidente.Eis alguns pontos que só de leve afloram a profundidade e o interesse que este ensaio (como outros neste livro) apresenta. Trata-se de mais uma contribuição, a juntar às já numerosas de Haroldo de Campos, deste poeta e deste crítico que não passa nem há-de passar despercebido na história da cultura contemporânea.

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